7 de outubro de 2015

Crítica: O Congresso Futurista (Le Congrès, 2013)


Quando o cinema fala do próprio cinema nós, expectadores, somos convidados a viajar numa exposição cheia de auto - referências e detalhes minuciosos que configuram o cinema seja como arte ou como indústria. “O Congresso Futurista” (Le Congrès) é uma obra que justamente aborda esse tema que vez ou outra é utilizado por alguns cineastas.  Depois de se consagrar com a animação documental “Valsa com Bashir” em 2008, o diretor israelense Ari Folman retorna ao universo animado (misturado ao live-action), para dessa vez fazer uma crítica à indústria cinematográfica e ao poder que a mesma possui sobre a sociedade. E ele utiliza ferramentas diferenciadas para desenvolver seu filme. Uma pitada surrealista mesclada ao uso da metalinguagem faz de “O Congresso Futurista” uma das ficções-científicas mais densas e interessantes dos últimos anos.

O filme gira em torno da atriz Robin Wright interpretando ela mesma e utiliza alguns aspectos biográficos de sua carreira e vida pessoal. Cotada como queridinha do cinema na época de filmes como “A Princesa Prometida” (1987) e “Forrest Gump” (1994), Robin aparece na primeira cena visivelmente abalada ouvindo seu agente Al (interpretado por Harvey Keitel) explanando as causas que levaram a carreira de Robin ao fracasso: escolhas erradas, papéis em filmes ruins, a decisão de deixar a atuação de lado para cuidar da família. Ele a informa sobre uma importante reunião com um executivo de um grande estúdio de cinema, onde lhe propõem a novidade tecnológica que irá revolucionar a sétima arte: ser escaneada para se tornar uma atriz digital e sua imagem ser usada pelo grande estúdio, aqui chamado de Miramount (uma clara e irônica referência à Miramax e Paramount). Para isso, ela precisaria dar um fim à sua carreira no mundo real, conferindo a ela tempo para cuidar de seu filho mais novo que sofre de uma doença degenerativa que acomete a visão e a audição.

Nesse primeiro ato, o diretor Folman destila todo seu veneno ao fazer uma crítica ácida aos grandes estúdios e produtores executivos que visam única e exclusivamente o lucro.  Ao digitalizar um ator, os realizadores de um filme não mais sofreriam com os problemas envolvendo atrasos, vício em álcool e outras drogas, depressão, temperamento difícil e outros tormentos que afligem inúmeros atores de Hollywood. Os estúdios lucrariam exorbitantemente apenas com a imagem digital, negando aos atores a liberdade criativa para escolher papeis e gêneros de filmes.


É no segundo ato do longa que Folman opta para a imersão no surrealismo. Após 20 anos da assinatura de seu contrato com a Miramount, vemos Robin a caminho de um grande congresso onde será homenageada. Para chegar lá, é preciso inalar uma substância que a transforma em um desenho animado. A cenografia do filme investe num tom lisérgico, misturando traços de animação japonesa com desenhos clássicos do Mickey e um visual que remete ao psicodelismo de Yellow Submarine dos Beatles. Em meio a esse cenário surreal, o roteiro critica a alienação do público perante as promessas impostas pela mídia, como a criação da substância que ao ser ingerida lhe dá a aparência que desejar, até mesmo ser igual a uma celebridade. A tal substância representa a ilusão do livre arbítrio utilizada no filme.

Mas o posicionamento crítico de Ari Folman vai além. No terceiro e melancólico ato, ele nos mostra a partir da busca de Robin pelo reencontro com seu filho, uma visão crítica e um tanto quanto pessimista do futuro da humanidade. Enquanto muitos preferem delirar num mundo animado onde possuem o “livre arbítrio” de serem o que quiserem, outros vivem a desolação que encontra-se o mundo real.

Robin Wright está magnífica, transpondo para esse projeto tão ousado, uma performance orgânica e comovente. Aliás, todo o elenco está excelente. Desde um maquiavélico Danny Huston na pele do chefe da Miramount, até um Harvey Keitel que oscila perfeitamente entre momentos imponentes e momentos doces. Faço também uma menção honrosa à bela participação de Paul Giamatti como o médico do filho de Robin.

Assim como os grandes estúdios cinematográficos utilizam os roteiristas, diretores e principalmente os atores como meros objetos de lucro, o poder midiático está aí para ilusionar a sociedade e usá-la como um simples objeto de massificação. E é por isso que considero “O Congresso Futurista” uma obra mais que atual. 


14 de setembro de 2015

Crítica: Chinatown (1974)


Um dos filmes mais célebres realizado por Roman Polanski, “Chinatown” levou o cinema noir em uma direção totalmente nova, subvertendo o sonho americano em um retrato mais sombrio e sujo da América. Considerado como um filme neo-noir, ele apresenta uma nova roupagem ao gênero famoso das décadas de 30 e 40, que continham sempre as figuras do detetive, da femme fatale e de vilões abomináveis, todos envolvidos em intrigas policiais. 

Em Chinatown, Jack J. Gittes (Jack Nicholson) é um detetive contratado para investigar um caso de adultério a pedido de uma mulher que ele acredita ser Evelyn Mulwray (Diane Ladd), esposa do engenheiro–chefe do Departamento de Águas e Energia de Los Angeles, Hollis Mulwray (Darrell Zwerling). À medida que o caso se desenvolve, Jack se envolve com a verdadeira Sra. Mulwray (Faey Dunaway) em uma intriga de corrupção, fraude,  assassinato e incesto, que de forma magistral desconstrói a típica narrativa de filmes investigativos. Aqui não há espaço para reviravoltas simplistas, mas sim para um desenvolvimento complexo cheio de sutilezas em sua narrativa.
    
O roteiro excepcionalmente escrito por Robert Towne e muito bem amarrado (não foi à toa que ganhou um Oscar de melhor roteiro), revela cuidadosamente os seus muitos mistérios com uma narrativa inteligente e mostra personagens dúbios e cínicos, enaltecendo o lado sujo da natureza humana. Observa-se que é muito difícil determinar quem é o criminoso e quem é a vítima em Chinatown. O tema da ambiguidade moral sustenta o filme. O próprio detetive Gittes apresenta uma moral questionável, apreciando piadas machistas e algumas vezes portando um comportamento agressivo inconsequente (como vemos na cena da barbearia).

Jack Nicholson oferece uma das melhores performances de sua carreira como Gittes, um detetive inteligente, espirituoso e que tem más recordações do bairro Chinatown, no centro de Los Angeles, onde trabalhou durante um período. Truques simples, mas inteligentes, são feitos por ele em sua investigação, como quando ele coloca um relógio sob os pneus do carro de Hollis Mulwray à noite para ver quanto tempo o carro ficou estacionado. Esses momentos nos permitem conhecer a personalidade de Gittes. Além disso, vemos Chinatown através dos olhos dele. Roman Polanski fez questão de retirar qualquer narração em off, filmando tudo sob a perspectiva de seu protagonista (como se a câmera estivesse sempre posicionada sobre os ombros de Gittes), fazendo o espectador ter a impressão de sempre acompanhar as investigações do detetive como se fosse uma testemunha invisível de todos os acontecimentos ao redor dele.

Faye Dunaway vai além da típica femme fatale. Ela incorpora uma personagem que mais que sedutora, esconde segredos profundos e sombrios de seu passado, tornando-a a personagem mais misteriosa e implacável do longa. Em boa parte do filme, não sabemos suas reais motivações no envolvimento com o detetive Gittes nem se a mesma está de fato envolvida na morte do marido. Também vemos a excelente participação de John Huston, como um homem vil e inescrupuloso. Quando entra em cena, Huston rouba todo o momento para si. O próprio Roman Polanski faz uma ponta no filme na famosa cena em que o detetive Gittes tem seu nariz cortado.

“Chinatown” também é notável pelo fim trágico de sua história.  O final foi concebido por Polanski em oposição ao roteirista Robert Towne. Polanski foi provavelmente influenciado por sua própria experiência amarga do assassinato brutal de sua esposa Sharon Tate por seguidores de Charles Mason em Los Angeles.
    
Mesmo em meio aos conflitos entre diretor e roteirista, “Chinatown” é a combinação de todos os elementos que fazem dele um filme inesquecível: desde a inteligência do roteiro e a elegância cinematográfica, passando pela fotografia inovadora para o gênero noir, deixando o clássico P&B e apostando em uma paleta com cores terrosas e uma trilha sonora sublime composta por Jerry Goldsmith. Uma trilha que contribui não só para o clima de tensão e intrigas mas também para dar um certo sabor da década de 30.

Mais do que um clássico inesquecível, vejo em “Chinatown” como um estudo envolvente da corrupção moral, um tema tão relevante hoje como era no tempo em que ele foi filmado.

4 de setembro de 2015

Crítica: Garota Exemplar (Gone Girl, 2014)

    

Sempre que fico sabendo de um projeto assinado por David Fincher, já começo a contar os dias para conferi-lo. Não apenas pelo fato de Fincher ser um de meus cineastas favoritos, mas sobretudo pela certeza de que terei uma experiência cinematográfica sem igual. A qualidade é uma marca registrada em seus filmes. Basta lembrar de thrillers como Seven e Zodíaco e dramas memoráveis como A Rede Social. Em Garota Exemplar (Gone Girl), Fincher mais uma vez nos presenteia com uma obra impactante, crua e minuciosamente bem orquestrada.
    
O filme não é um mero thriller sobre assassinato, mas uma excelente mistura de drama policial com estudo de relacionamentos. Fincher e a roteirista Gillian Flynn, que também escreveu o romance do qual o filme foi adaptado, estão mais preocupados em mostrar as falsidades presentes em um casamento “perfeito” do que apenas nos dar pistas e detalhes de um crime. O diretor e a roteirista pintam o casamento como um verdadeiro jogo.
    
Nick Dunne (Ben Affleck), é, sem trocadilhos, um parceiro super-herói: charmoso, carismático e bonito. Ele escreve para uma revista masculina como ser o "cara perfeito". Mas para um cara perfeito, precisamos de uma garota perfeita. Conhecemos Amy Elliott Dunne (Rosamund Pike), uma linda escritora de livros infantis, cheia de classe, mas que mantém um senso de humor. Desde criança, Amy foi considerada a garota ideal, a Amazing Amy, título esse que nomeou a personagem de seus livros infantis. No quinto aniversário de casamento dos dois, Amy misteriosamente desaparece. Nós passamos a conhecê-la através de seu diário que está sendo lido para nós ao longo do filme. A mídia representada pelo jornalismo sensacionalista, não apenas suspeita que Nick é o responsável pelo sumiço de sua esposa, mas rapidamente demoniza-o como assassino, sociopata, e um possível praticante de incesto.

    
Um dos muitos méritos de “Garota Exemplar” está na estrutura do roteiro escrito por Flynn, nos intrigando ao oferecer os dois pontos de vista para os acontecimentos da narrativa: o de Nick mostrado durante o dia-a-dia das buscas pela esposa, e o de Amy representado pela narração em off de trechos de seu diário. A narrativa torce e destorce seus protagonistas, fazendo o expectador variar em suas opiniões sobre cada um ao longo do filme. Ora torcemos pela inocência de Nick, ora o chamamos de canalha. Mas vou parar com certos detalhes da trama já que o maior prazer deste filme é descobrir cada reviravolta com olhos desavisados.

Fincher e Flynn, mostram ser uma das melhores duplas de diretor-roteirista em anos. Em um romance policial, estamos acostumados ao tapete sendo puxado debaixo de nós e em Garota Exemplar isso vai além. O resultado é um dos filmes mais surpreendentes do ano passado e Fincher faz questão de chamar a atenção para algumas coisas. Por um lado, ele satiriza o jornalismo que hoje muitas vezes beira ao sensacionalismo. Por outro lado, Fincher e Flynn fazem com que todos sejam suspeitos e que o expectador não consiga desvendar os mistérios facilmente.


O elenco é outro grande mérito do filme. Ben Affleck tem aqui sua melhor performance até agora. Nick Dunne é o papel perfeito pra ele. Sua dificuldade em sorrir naturalmente e sua falta de expressão em alguns momentos são os atributos perfeitos para este personagem. Enquanto Affleck é sutil, Rosamund Pike se entrega de corpo e alma numa personagem vestida por camadas e camadas de mistério. Certamente esse é o papel da carreira de Pike e que a fez ser indicada ao Oscar. Fincher surpreende ao escalar seu elenco de apoio, trazendo nomes famosos da comédia como Tyler Perry e Neil Patrick Harris em atuações super convincentes, além das ótimas Kim Dickens e Carrie Coon e de Patrick Fugit (o eterno garoto de “Quase Famosos”).
   
Em mais uma colaboração com Fincher, o editor Kirk Baxter, o diretor de fotografia Jeff Cronenweth e os compositores Trent Reznor e Atticus Ross fazem dos elementos técnicos outros personagens da trama. A edição é espetacular do primeiro ao último frame e a fotografia exalta todo aquela atmosfera melancólica que circunda os personagens. A trilha de Reznor e Ross complementam o tom crescente de tensão ao utilizar instrumentos diferentes para compor faixas sonoras.
    
No 10º filme de sua carreira, David Fincher atinge o equilíbrio brilhante de encontrar um novo território, mesclando o thriller com o drama e toques de humor ácido. Se sua carreira tem sido uma série de pinceladas que pintam um retrato da alma decadente da sociedade, “Garota Exemplar” é um dos mais audaciosos (e um dos mais divertidos também).


24 de agosto de 2015

Crítica: Adeus, Lenin! (Good Bye Lenin!, 2003)

    

1988. Alemanha Oriental. O jovem Alexander Kerner (Daniel Brühl) participa de uma manifestação quando é agredido pela polícia. Sua mãe, Christiane Kerner (Kathrin Sass), ao ver aquilo, sofre um infarto e entra em coma durante meses. Durante o tempo que ela ficou desacordada, o país passou por mudanças políticas e o Muro de Berlim veio abaixo, marcando então o fim da divisão entre Alemanha Ocidental e Oriental. Christiane, uma grande defensora do Comunismo, acorda de seu coma, mas com a saúde bastante debilitada e o coração fraco. Seu filho Alex é então alertado pelo médico de que qualquer grande emoção ou choque pode ser fatal para o coração de sua mãe. Alex resolve utilizar sua criatividade para esconder da mãe as mudanças e a influência capitalista que atingiu a região oriental do país após a unificação. E para isso ele conta com a ajuda de sua irmã Ariane (Maria Simon ) e seu amigo Denis (Florian Lukas), um aspirante a cineasta.
    
Com essa premissa, “Adeus, Lênin!” (Goodbye, Lenin!)  já revela ao espectador uma história interessante e envolvente ambientada numa época complicada e de transição pela qual a Alemanha passou. Mais que um filme sobre um período histórico e importante, nós assistimos uma história de amor entre mãe e filho, que conta com muita delicadeza a dedicação e o carinho que aquele filho possui para com sua mãe.  O diretor Wolfgang Becker se despe de uma carga excessivamente melodramática para seguir um caminho contrário. Com muita sobriedade, ele aposta numa mistura de drama familiar com toques de humor inteligente para nos contar uma história tão bela e tão rica em reflexões sócio-políticas e ideológicas.
    
Wolfgang faz questão de mostrar ao público o quanto o fim do Comunismo atingiu a população da Alemanha Oriental, que após as transformações no país, via-se uma forma de "mudar de vida" com o fim do regime, mas em meio ao capitalismo e a concorrência com a população da ex-região ocidental, a grande maioria encontrava empregos menores. No filme, vemos a irmã de Alex se tornar uma atendente do Burger King e o próprio Alex como um vendedor de tv a cabo, ressaltando então que o capitalismo chegou imponente por lá, mas desfavoreceu a vida dos habitantes da antiga parte oriental do país.


Entretanto, em meio aos posicionamentos sociais, o diretor nos emociona e ao mesmo tempo nos diverte com as atitudes do jovem Alexander ao tentar esconder da mãe o fim do Comunismo no país. Com a ajuda de seu amigo Denis, Alex cria um telejornal falso que simula os noticiários da época anterior à queda do Muro e explica certos detalhes como o grande banner da Coca-Cola posicionado ao lado da janela do quarto de Christiane.
    
Se o filme já é envolvente pela sua premissa, ele passa a ser mais ainda graças ao excelente elenco encabeçado por Daniel Brühl e Katrin Sass. Brühl e seu exímio talento como ator, nos cativa primorosamente com o seu personagem Alexander e seu amor pela mãe. Katrin Sass interpreta perfeitamente a mãe, Christiane, e nos emociona com uma personagem tão forte e ao mesmo tempo sensível, que defende a todo custo o estilo de vida comunista. Os coadjuvantes Florian Lukas e Maria Simon também demonstram grande competência em cena como personagens essenciais ao plano de Alexander.
    
Além de uma direção bastante competente, o roteiro escrito por Wolfgang Becker em parceria com Bernd Lichtenberg também justifica a excelente qualidade do longa. ”Adeus, Lênin!” concorreu ao Globo de Ouro e ao BAFTA de melhor filme estrangeiro em 2004, além de ter sido premiado no Festival de Berlim e no César Awards. Prêmios mais do que justos para uma obra tão edificante. O cinema alemão é um pólo que sempre traz filmes relevantes e cineastas promissores que não precisam estar em Hollywood para serem apreciados pela comunidade cinéfila. E “Adeus Lênin!” é a soma de todas as melhores qualidades que o cinema germânico tem a oferecer. E acima de tudo, é uma abordagem histórica e reflexiva moldada através de uma bela história sobre a relação entre mãe e filho.
    

19 de agosto de 2015

Crítica: Trainspotting - Sem Limites (Trainspotting, 1996)



“Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”.  É com esta frase marcante que inicia-se um dos filmes mais cultuados do cinema alternativo. Em 1996, o britânico Danny Boyle ousou lançar aquele que se tornaria o filme mais lembrado de sua carreira. “Trainspotting” é baseado no livro homônimo escrito por Irvine Welsh e conta as desventuras de Mark Renton (Ewan McGregor), um jovem do subúrbio de Edimburgo viciado em heroína que junto com seus amigos também viciados, se envolvem em golpes a traficantes.
    
Costurado por um roteiro ácido cheio de diálogos rápidos, Trainspotting passeia pelo cotidiano de um viciado, mostrando a fugacidade das consequências geradas por esse estilo de vida. Mas Danny Boyle não está disposto a julgar o uso de entorpecentes através de um “panfletarismo” careta e muito menos de fazer apologia às drogas. A proposta dele é mostrar um comportamento comum da “geração pub” dos anos 90 que ao negar uma vida hipócrita, certinha e pré-programada, decidia viver contra às regras. O discurso crítico e até niilista do protagonista Renton na cena inicial do longa, reflete o que movia muitos jovens dessa época. Escolher “não viver” ao invés de uma carreira ou uma vida normal fazia-os acreditar que estavam dentro de uma filosofia nova e libertadora, onde não há motivos para nada, apenas a maior curtição do mundo: a heroína. A heroína representava não um subterfúgio para os problemas da vida, mas sim a libertação dentro de uma sociedade de consumo.


Ao filmar de maneira deselegante e aleatória as desventuras de Renton e seus amigos Spud, Sick Boy, Tommy e Begbie, Danny Boyle opta por um jogo rápido de planos que casa perfeitamente com o estilo de vida destes personagens. Sem se preocupar com um estilo rebuscado visualmente falando, o diretor investe em simbologias interessantíssimas no decorrer de seus 94 minutos de longa. Simbologias que estão em cenas memoráveis como a cena do banheiro público onde Renton mergulha em uma privada para não perder seus supositórios de heroína e que podemos interpretar como a entrada numa vida onde só encontra-se merda; e a cena onde o mesmo após sofrer uma overdose, alucina estar afundando em um tapete como se estivesse entrando num caixão.
    
No seu primeiro papel de destaque no cinema, Ewan McGregor está espetacular, me arrisco até a dizer que esta é uma das suas maiores performances. Seus coadjuvantes também não ficam para trás. Jonny Lee Miller na pele de Sick Boy, Ewen Bremner como Spud e Robert Carlyle como Begbie se destacam como estes personagens divertidos e ao mesmo tempo desagradáveis. Personagens que mesmo vivendo em camaradagem, não hesitam em enganar uns aos outros.

E em meio às alucinações, à crítica impiedosa presente no roteiro e à quebra de linearidade no tempo, Trainspotting só podia ter uma trilha sonora que combinasse perfeitamente com a rotina de Renton e sua trupe. Nomes como Lou Reed, Iggy Pop e Underworld embalam esse longa mais que desenfreado. 
    
Sem qualquer preocupação em nos fazer chocar, Danny Boyle estampa na nossa cara o sentimento de auto- suficiência provocado por uma vida regada a entorpecentes que fazem estes personagens criticarem a sociedade de consumo. Mas quem foi disse que as drogas não são também subprodutos de uma sociedade de consumo?


13 de agosto de 2015

Crítica: Planeta dos Macacos - O Confronto (Dawn of the Planet of the Apes, 2014)

    
   
    Há um pouco mais de 50 anos atrás, o escritor Pierre Boulle trouxe ao mundo uma das obras que mais influenciou o universo da ficção-científica e da cultura pop. Seu livro inspirou o cineasta Franklin J. Schaffner a lançar em 1968 o clássico “O Planeta dos Macacos” estrelado por Charlton Heston e que entrou para a história do cinema . A partir de então, a franquia estendeu-se para variados rumos na tv e no cinema trazendo em 2011 o ótimo reboot “Planeta dos Macacos: A Origem” nas mãos de Rupert Wyatt. Fazer uma sequência com a mesma qualidade do seu antecessor foi um grande desafio para o diretor Matt Reeves, mas que felizmente ele conseguiu superar em todas as proporções. “Planeta dos Macacos: O Confronto” (Dawn of the Planet of the Apes) não é apenas um excelente blockbuster, mas um filme que carrega questionamentos impactantes acerca da natureza humana que reside não apenas em nós, homo sapiens, mas também em nossos primos, os símios. Mais sombrio e maduro, o novo longa consegue criar uma tensão crescente ao espectador.
    Na trama, a população humana foi quase dizimada pelo vírus da gripe símia criado em laboratório 10 anos antes, restando apenas alguns sobreviventes em meio a um cenário pós-apocalíptico nas grandes metrópoles como São Francisco. Contudo, na imensa floresta, os macacos liderados por Cesar procuram construir sua própria sociedade baseada na paz e sabedoria. Quando um grupo de humanos adentra o território dos símios para tentar reativar uma usina hidroelétrica, o estopim para um tenso e violento conflito entre as duas espécies é iniciado.


    Se no primeiro filme o foco principal é abordar a forma como os macacos adquiriram a sapiência elevada, em O Confronto nos deparamos com um belíssimo primeiro ato onde Matt Reeves aprofunda a humanização e a organização social dos símios. A fotografia exuberante das tomadas iniciais na floresta enriquece o grau de realidade ao longa, tornando aquele território belamente palpável.  Mas o foco principal está no desenvolvimento comportamental entre seres de uma mesma espécie. E este desenvolvimento está retratado nas figuras de Cesar e Koba. Enquanto Cesar conheceu amor e carinho com os humanos, Koba conheceu a dor, o sofrimento e a ganância. E isto é refletido na personalidade de cada um deles, principalmente quando eles voltam a ter contato com os humanos. Em Cesar reside a compreensão fazendo-o enxergar a bondade, principalmente em Malcolm (interpretado por Jason Clarke), entretanto, em Koba há apenas o crescimento do ódio. No grupo dos humanos há também o seu representante antagônico, que ao sentir repúdio dos macacos pela desolação em que a humanidade se encontra, reflete o enorme grau de ignorância do personagem. Paz x Ódio. Tolerância x Preconceito. Dois contrapontos brilhantemente explorados pelo roteiro.
    Mas não é apenas o bom roteiro que engrandece a dualidade vista nas figuras de Cesar e Koba. Além, é claro, dos efeitos visuais impecáveis, a performance do elenco empregada pela captura de movimentos trouxe neste filme um nível absurdamente realista. Andy Serkis, brilhante e excepcional como sempre, confere à Cesar a complexidade que o personagem merece (os planos inicial e final focados em seu olhar foi uma opção genial do diretor). Ressalto o mesmo para Toby Kebbell, que se entrega completamente na pele de Koba. O elenco dos personagens humanos encabeçado por Jason Clarke, Keri Russel e Gary Oldman acaba sendo ofuscado por todo o elenco dos personagens símios, que além dos já mencionados Serkis e Kebbell, há também Nick Thurston como o filho de Cesar, Olhos Azuis e a atriz Karin Konoval que interpreta o dócil orangotango Maurice.
    Se nos dois primeiros atos do longa há um extenso espaço para diálogos expositivos (e a excelente demonstração da comunicação através de sinais feita pelos símios), no terceiro ato vemos cenas de ação, todas perfeitamente coreografadas em planos elegantes, justificando a eficiente direção de Matt Reeves.
    Planeta dos Macacos: O Confronto dialoga com a nossa história, a história da humanidade e a construção de todas as civilizações ocidentais e orientais. Toda sociedade em construção por mais sábia que seja e mesmo com as tentativas de paz, não consegue se distanciar dos conflitos e das guerras. Como disse o filósofo Thomas Hobbes: “O homem é o lobo do homem”. E essa teoria associa-se perfeitamente às duas civilizações do filme. César sabe disso e o plano final nos confirma o que estar por vir no próximo filme.


2 de agosto de 2015

Crítica: O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, 2014)


     Não é sempre que vemos uma comédia aventuresca ser cuidadosamente desenvolvida através de um roteiro inteligente e bem amarrado. Em seu mais novo e elegante trabalho, Wes Anderson prova ser um dos cineastas mais peculiares e originais dessa geração. “O Grande Hotel Budapeste ” é, sem dúvida, uma das obras mais agradáveis lançadas em 2014 e visualmente um deleite para nossos olhos. Inspirado nos trabalhos de Stefan Zweig e com roteiro assinado pelo próprio Anderson, o filme nos conta a história de Monsieur Gustave (Ralph Fiennes), um famoso concierge do luxuoso hotel localizado no país fictício de Zubrowka que tem como seu protegido o jovem Zero (Tony Revolori), o novo Lobby Boy do hotel. Juntos, em meio a um período de guerra, os dois se envolvem numa intriga familiar, fazendo com que Gustave seja acusado de um homicídio e do roubo de um famoso quadro renascentista.
    Recheado de personagens divertidos que muitas vezes aparentam ser irreais, o filme propõe ao seu expectador uma história que poderia perfeitamente ter saído de um conto de aventuras. Ao assistirmos cada interação do protagonista com os demais personagens do enredo dentro de um cenário multicolorido, nós conseguimos perceber uma deliciosa fábula sendo construída diante de nossa vista. Wes Anderson nos instiga para uma diversão incomum, onde cada participante representa uma estranha caricatura que só ele mesmo sabe fazer (e muito bem). Temos um herói injustiçado, um vilão sem escrúpulos, um casal de apaixonados. Todos eles moldados por uma narrativa contagiante e com uma boa e chamativa dose de humor adulto e inteligente. Vale lembrar que em seus dois trabalhos anteriores, “O Fantástico Sr. Raposo” (2009) e “Moonrise Kingdom” (2012), Anderson bebeu da mesma fonte fabulesca (que parece estar em seu íntimo) para criar histórias distintas e tão adoráveis quanto a construída em O Grande Hotel Budapeste.
    E para uma narrativa tão peculiar, ele adotou um recurso bastante lúdico para o desenvolvimento da história. Com uma divisão em capítulos como se fosse um livro sendo contado, o longa passeia por cada etapa e obstáculo vivido por Gustave, como sua estadia na prisão, a perseguição do vilão Jopling (um inusitado Willem Dafoe) e a ajuda de personagens secundários vividos por Bill Murray, Owen Wilson e outras divertidas participações.

    Outros fatores que tornam o filme mais lúdico é a deliciosa trilha sonora composta por Alexandre Desplat (um parceiro corriqueiro de Anderson nos últimos anos) e a famosa paleta de cores sempre utilizada pelo diretor em sua filmografia. Desde o cenário até ao figurino, o uso proposital de tons pasteis misturados às cores mais vivas enaltece a influência de Anderson na construção de todo o design de produção do longa. Uma característica curiosa é a mudança de razão de aspecto em tempos distintos da narrativa. Nas cenas protagonizadas por Jude Law e F. Murray Abraham com suas conversas para relembrar o passado do hotel, opta-se pelo Scope. Entretanto, na maior parte estamos assistindo a jornada de Gustave e seu ajudante Zero (Tony Revolori) em razão de aspecto de 4:3, uma característica singular que não vemos com tanta frequência no cinema atual.
    Ralph Fiennes mostra que possui um lado cômico dentro de si e constrói trejeitos comportamentais tornando Gustave um protagonista a ser adorado pelo público e claro, adorado também por ser o maior amigo e mentor do jovem Zero. Este, interpretado por Tony Revolori protagoniza ao lado de Saoirse Ronan o casal de heróis e literalmente os salvadores da grande intriga policial desencadeada pelo vilão. É impossível citar todas as participações inclusas num elenco tão memorável em que vemos nomes como Tilda Swinton, Edward Norton, Adrien Brody e Harvey Keitel.
    Com uma imaginação fértil, Wes Anderson está sempre recriando novas maneiras de nos contar fábulas para adultos costuradas por excelentes roteiros que por vezes estão cheios de sátiras e um humor único. E “O Grande Hotel Budapeste” é o filme mais "andersoniano" do cineasta. O filme que mais possui as melhores características do cinema tão rico e inventivo dele. Considero este filme a obra-prima de Wes Anderson, um verdadeiro presente para os cinéfilos com uma combinação perfeita de versatilidade e elegância.